ONDE RAÇA ENCONTRA O SEXO Nina Rodrigues, classes perigosas e pederastas na Salvador de fins dos oitocentos


Primeiro livro publicado pelo médico maranhense Nina Rodrigues, As Raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil é um dos documentos mais importantes para refletir sobre as relações entre a Medicina e a manutenção de hierarquias sócio raciais entre fins do século XIX e começo do XX. Ora, trata-se de um documento revelador de dimensões múltiplas, nas quais convergiam o debate sobre mestiçagem, a leitura de certos sujeitos como degenerados, e a, também, práticas erótico-afetivas entre homens. Neste artigo, pretendo analisar as considerações do autor acerca das relações entre raça a sexualidades rebeldes, indicando a necessidade articular estes dois atravessamentos. Para tal, recorrerei a história social em diálogo próximo com os estudos de gênero e os estudos queer.

Link do artigo: https://seer.franca.unesp.br/index.php/historiaecultura/article/view/3975

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Esse artigo resume a introdução da minha tese, ‘O rol dos perversos’, defendida no ano passado.

O rol dos perversos: homossexualidade masculina e psiquiatria na Bahia de fins do século XIX (1880-1900). Tese (Doutorado em História Social)

Resumo: A presente tese pretende responder a duas questões, e seus desdobramentos. Em primeiro lugar, investiga-se de que maneira discursos acerca das práticas erótico-afetivas entre homens, presentes em obras médicas escritas na Bahia na década de 1890, passaram a tratar esses comportamentos como o produto de determinados corpos, caracterizados como intrinsecamente anômalos; em segundo lugar, como a Psiquiatria propiciou instrumentos e vocabulário para pensar distinções entre seres humanos com base num erotismo não-heterocentrado, ao longo do processo de estabelecimento e consolidação deste campo do saber médico na Faculdade de Medicina da Bahia. Mais que elaborações abstratas, conceitos como ‘homo-sexual’, ‘homo-sexualismo’, ‘inversão sexual’ e ‘androphilismo’, permitiram tematizar tensões sociais do Brasil urbano em fim dos oitocentos. Derivado das questões anteriores, pretende-se entender de que maneira os discursos de inspiração psiquiátrica acerca de sujeitos que se dedicavam a práticas erótico-afetivas não-heterocentradas se articulavam com outros, envolvendo as distinções entre os gêneros, e as pretensas hierarquias naturais entre raças humanas. Tal conexão permitiria discorrer sobre práticas erótico-afetivas individuais consideradas dissidentes destacando suas repercussões no plano social. Para levar a cabo este estudo, foi realizada uma pesquisa nas teses sustentadas pelos finalistas do curso médico na Faculdade de Medicina da Bahia entre 1880 e 1900, que trataram do tema quer direta, quer tangencialmente, valendo-se de conceitos e noções elaborados pela Psiquiatria. Este corpus documental foi suplementado por periódicos especializados, textos literários e/ou de outros campos do saber que possuem partilhas, inclusive temáticas e conceituais, com os assuntos das teses. A análise está ancorada sobretudo num diálogo com a historiografia no campo de História da Medicina e da Psiquiatria no século XIX, bem como com estudos sobre História da Homossexualidade masculina nos oitocentos, em particular na Bahia. Também se realizou, quando pertinente, o diálogo com a historiografia referente à produção da raça como uma questão científica no Brasil do período.

Link para baixar: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/36887

O problema da penalização de homossexuais em fins do século XIX: nomear, tratar e punir

link para o artigo: https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/17751

Nesse artigo, publicado na Ponta de Lança, eu investigo um dos pontos em que minha dissertação e minha tese se encontram: o terreno da punição de homossexuais, onde os significados de ‘defesa da sociedade’ se tornam mais evidentes para estudiosos, bem como as violências agregadas quando experiências indivíduos estão situados em posições socialmente desvantajosas.

É um texto em grande parte teórico, mas que me parece muito pertinente. Essas práticas, acredito, foram incorporadas a instituições de governo, e informaram muito da violência que pessoas LGBTQIA+ passaram a sofrer ao longo do século seguinte.

Representações da Antiguidade Clássica e o processo de nomeação de sexualidades divergentes no século XIX (1850-1900)

link para o artigo: https://revista.ueg.br/index.php/revistahistoria/article/view/12211

Nesta nota de pesquisa publicada na Revista de História da UEG, eu apresento algumas das reflexões que continuam me perseguindo: os elementos que tornam o erotismo entre pessoas do mesmo gênero enquadrável e dizível, tomando por bases personagens, textos e episódios da antiguidade greco-romana. A minha sensação é que muito do que parece inexistente ou invisível, no século XIX, passaria por essas lentes.

Lançamento de Capítulo de Livro – dia internacional de combate a LGBTfobia.

Boa noite a todas, todes e todos. É uma alegria enorme estar aqui. Agradeço muito a Elias, Rita e Benito, pela oportunidade de participar do simpósio, dos comentários generoso e atentos ao meu trabalho e, agora, da oportunidade de publicação. Bem como a Roberta, pela parte técnica, e a você, Joana, pela mediação. Eu preparei um pequeno material, para não me perder.
Meu nome é Daniel, e sou historiador formado pela UFBA até o doutorado, orientado pela professora Lígia Bellini. Desde 2013, trabalho com história da homossexualidade masculina no século XIX, sob o viés da higiene, da medicina legal e, atualmente, da psiquiatria. Neste capítulo, intitulado “Sobre andrômanos e ephebos: Notas sobre corpos rebeldes em Abel Botelho e Alfredo Gallis (1891-1906)”, um dos frutos do meu período Sanduíche no ICS/Ulisboa, orientado pela Drª Cristiana Bastos, eu faço uma incursão um tanto fora da minha área de atuação mais confortável, e busco refletir sobre literatura isso é, sobre duas obras literárias que foram influenciadas por concepções médicas.
A primeira é O Barão de Lavos, de Abel Botelho, publicada em 1891; a outra é o Sr. Ganymedes, de Alfredo Gallis, também conhecido como Rabelais, publicada em 1906. As duas obras foram escritas por autores portugueses, mas circularam dos dois lados do atlântico – estamos falando de uma rede de leitura e, sobretudo, de circulação de livros e ideias, e que não se limitava a um ou outro país. E as duas podem ser pensadas, de modo sumário, como naturalistas ou influenciadas pelo naturalismo. Isso explica o uso constante de metáforas, noções, vocabulário e abordagens dadas por obras de cariz médico psiquiátrico quando se tratava de práticas erótico-afetivas consideradas como dissidentes – Botelho vai falar de “atavismo”, e de “degeneração” no sentido médico; Gallis, por sua vez, vai citar explicitamente a obra do médico alemão Richard von Krafft-Ebing.
O barão de Lavos foca na vida de um nobre português, e no seu processo de decadência física e moral e morte em função de sua “andromania”, sua obsessão por se relacionar sexualmente com outros homens que corporificassem seu ideal de beleza, influenciado por exemplos pinçados da antiguidade clássica e do renascimento; já a obra de Alfredo Gallis, posterior, se detém sobre as desventuras de um efebo, isso é, um “invertido sexual” da classe burguesa em busca de um casamento de fachada com uma mulher mais velha e rica para manter um modo de vida extravagante com seu amado.
Os dois romances partilham, em larga medida, de uma leitura peculiar sobre o corpo, distinta da de algumas obras anteriores. Enquanto em obras como “O Ateneu”, ou ainda “Um homem gasto” os corpos, sexual e afetivamente desviantes são apresentados como perfectíveis, isso é, passíveis de uma intervenção normativa saneadora – quer médica, quer de outra ordem – estes dois trabalhos apontam para uma percepção algo distinta, na qual a diferença estava marcada na própria ordem da natureza.
Contudo, neste sentido, talvez inadvertidamente, os autores terminam apontando para os próprios limites de suas construções conceituais sobre gênero e sexualidade, e insistindo da necessidade da adoção de medidas de outra ordem, para deter os desviantes em nome do que se compreendia como “honra e segurança das famílias” – neste sentido, em script algo diverso daquele indicado pela medicina. Estes debates e redefinições sobre corpo, natureza, hierarquias e perfectibilidades no campo das sexualidades e afetividades dissidentes também tiveram lugar aqui no Brasil. Mas isso… é outra história.
É como se indicando o abjeto em termos emprestados pela medicina, definindo os contornos do invisível, dizendo do indizível, os dois literatos lusitanos terminam apontando a existência de outras configurações possíveis; e que, quando a ciência falhava em tratamentos ou previsões, a violência poderia ser um recurso de intervenção contra determinados sujeitos fora de ordem. Mas aí já é spoiler!
É isso, gente. Obrigado por terem me ouvido, fiquem bem. Viva o SUS, viva a luta de pessoas LGBTQI+ e fora genocidas! Obrigado.

Link: https://www.letraevoz.com.br/produtos/clio-sai-do-armario-historiografia-lgbtqia/

Brevíssima nota sobre o dia de combate a LGBTQI+fobia e a história.

(em comemoração ao 17 de maio de 2020, dia mundial contra LGBTQI+fobia)

Olá, bom dia a todas, todes e todos. Meu nome é Daniel Silva, e sou doutorando em história social pela Universidade Federal da Bahia. Hoje eu gostaria de dividir com vocês um pouco da minha trajetória de pesquisa como historiador LGBTQI+.

Eu comecei a pesquisar este tema em 2013, quando ingressei no mestrado em História na Universidade Federal da Bahia, onde eu havia me formado. Ao longo dos anos finais do curso, eu desenvolvi um interesse muito grande em trabalhar com história da sexualidade e da homossexualidade em particular, por conta do meu envolvimento com um cineclube/grupo de militância chamado “tardes de cinema”.

Eu queria me dedicar a um tema que me mobilizasse enquanto indivíduo, e me incomodava o silêncio que havia sobre este conjunto de sujeitos, experiências e práticas afetivas e representações culturais.

Vários períodos pareciam interessantes, mas o que me encantou mais foi o século XIX, que naquele momento ainda era menos estudado em comparação com outros períodos, como o século XX e o período colonial.

Agora, nisto havia um problema. As fontes apontadas pela historiografia eram mais limitadas para os oitocentos. Neste sentido, um dos principais espaços onde se podia encontrar alguma documentação eram as Faculdade de Medicina, no meu caso, a da Bahia. Ainda assim, a documentação que eu encontrei e coletei tratava quase sempre sobre o homoerotismo masculino. Claro, era um olhar enviesado, que na melhor das hipóteses podia apontar experiências um pouco que “por cima do ombro” dos médicos e estudantes de medicina baianos, ocupados em analisar a realidade para capturar experiências diferentes, repreender e, até, punir, a pretexto de apontar “tratamentos” para os considerados divergentes.

Eu optei, portanto, por me dedicar ao estudo do discurso médico sobre esta temática, e venho me ocupando disto desde então, ainda que sob diferentes perspectivas. A literatura do período passou a me interessar por, em certa medida, se utilizar de teorias sobre corpo, ciência, psiquê, emoções, higiene, raça que também estavam presentes na documentação médica. Uma preocupação parecida me levou para o discurso de autores oitocentistas sobre a história, e o viés moralizando que se construiu a respeito de períodos históricos pregressos em função de sua adequação a padrões de gênero e de sexualidade pertinentes ao século XIX.

Um dos elementos que dificultam a escrita da história neste período é a ausência de uma terminologia sequer vagamente uniforme. O termo “homossexual” só aparece na minha documentação médica que eu pesquiso na última década do século XIX, e vai levar um bom tempo para se consolidar no século seguinte. Antes e depois, outros termos aparecem, como “sodomia”, “pederastia”, “vício grego”, “vício infame”, “efeminação”, “mignon”, “maricas” etc. Às vezes nem isso: aparecem comparações com períodos históricos pregressos da história europeia, como a antiguidade clássica, o renascimento italiano ou o período moderno.

Um caminho possível é a leitura desta documentação a partir dos estudos de gênero, o que permite analisar as representações e narrativas médicas articuladas com certas concepções oitocentistas do que seja masculinidade e feminilidade,

Acredito que este período é dos mais interessantes para o historiador. Certas representações médicas sobre sexualidades divergentes que começam a ser esboçadas no século XIX são muito parecidas com aquelas utilizadas por pessoas e grupos politicamente articuladas com um projeto de país desigual, autoritário e reacionário. Neste sentido, apontar os pressupostos e a história deste saber médico é uma forma de desnaturalizar a maneira como história do Brasil se construir, e combater certo tipo de narrativa LGBTQIfóbica da história, quer por operar silêncios dos que apontam os limites e fragilidades de padrões desiguais socialmente aceitos. Obrigado, viva o 17 de maio, viva a resistência das pessoas LGBTQI+ todas as horas e todos os dias.

Conversando com sua História: A história como tradução: erotismo e afeto entre homens no século XIX (1850-1900)

 

O Conversando com a sua História – promovido pelo Centro de Memória da Bahia, da Fundação Pedro Calmon/ SecultBA – tem como tema Masculinidades, Sexualidade e Identidade e, acontecerá na terça-feira 29/MAIO às 17h, no Foyer da Biblioteca Central do Estado da Bahia (Barris). A palestra será transmitida ao vivo na Página do Facebook do Centro de Memória da Bahia.

29 de Maio, às 17h | A história como tradução: erotismo e afeto entre homens no século XIX (1850-1900)

Palestrante: Daniel Silva – Bacharel (2013) e mestre (2015) em História pela UFBA, onde também desenvolve seus estudos de doutorado. Desde 2012 pesquisa discursos sobre sexualidade e homossexualidade na Bahia oitocentista especialmente envolvendo periódicos, literatura e a produção sobre o tema da Faculdade de Medicina da Bahia. Atua, também, como Analista Legislativo na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.

A antiguidade clássica foi referência comum em livros, periódicos e outros tipos de documentos que circularam nas cidades de Salvador, Lisboa e Rio de Janeiro no século XIX. Com base na história e na mitologia do período e usando de menções a personagens e episódios operavam-se de forma a constituir aquilo que era considerado virtuoso ou adequado socialmente. Há que se notar, porém, o caráter fortemente binário dessa operação. Se existia a virtude de Catão ou de Augusto havia a dimensão negativa: os exemplos viciosos. Essa palestra ressaltará uma fração desse rol indesejável, formada por personagens da antiguidade infamados por manterem relações erótico-afetivas com outros homens, utilizados como marcador de infâmia para a conduta de certos sujeitos na Cidade da Bahia e em outras cidades atlânticas no século XIX.

Imagem e informações da Fundação Pedro Calmon

A homossexualidade masculina nas teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia (1850-1900)

Resumo

O objetivo deste artigo é indicar como a homossexualidade masculina foi tematizada pelos médicos baianos oitocentistas. De uma denúncia moral, o erotismo e o afeto entre homens tornou-se, no final do século, uma doença específica dotada de características corpóreas bem marcadas e identificáveis. Intentase, igualmente, demonstrar que esses discursos médicos estavam ligados a preocupações da sociedade naquele período, não constituindo de maneira alguma uma discussão vazia, descolada da realidade, mas realizada na Faculdade de Medicina da Bahia.

Palavras-chave: Homossexualidade masculina; Medicina no século XIX; Masculinidade.

Link para download: A homossexualidade masculina nas teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia (1850 – 1900)

Gênero, homossexualidade e saber médico na Bahia do século XIX

Trecho
Tratando da história da homossexualidade no Brasil, James N. Green e Ronald Polito fizeram um diagnóstico pouco otimista: antes de 1870, as fontes produzidas sobre a homossexualidade são extremamente raras. Registros inexatos, esquivos, séries pouco claras ou de localização difícil, este seria o panorama para o historiador. (2004, p.p. 17) Décadas antes, este também foi o diagnóstico de João Silvério Trevisan (2011, p.p. 169-173): com o fim da Inquisição, que punia os sodomitas, e a falta de legislação criminal direta similar no Brasil império, tornou-se consideravelmente mais complicado obter fontes para tratar desta temática. Provavelmente as fontes mais importantes eram as de natureza médica, e o marco, para ambos, foi representado por uma obra intitulada Da Prostituição em Geral, e em Particular em Relação à Cidade do Rio de Janeiro: Prophylaxia da Syphilis, da autoria de Francisco Ferraz Macedo, escrita em 1872 na qual em um de seus capítulos, o autor dissertou sobre a prostituição masculina sob a rubrica da sodomia. A partir daí, a produção sobre o tema, na forma de teses de fim de curso da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, periódicos científicos, livros de medicina legal e processos-crime começou a se multiplicar. O ponto de viragem para uma espécie de ampliação discursiva veio com a obra de Pires de Almeida O homossexualismo – a libertinagem no Rio de Janeiro, datada de 1906 (GREEN e POLITO, 2004, p.p. 29-30). Em certa medida, esta obra espelharia o mesmo processo que se deu na Europa em 1870, quando surgiu com Westphal um termo para designar aqueles homens tinha algum tipo de desejo sexual ou afetivo pelo mesmo sexo. Lembra Foucault que foi a partir daí que se poderia falar de um homossexualismo enquanto patologia específica, dotada de profilaxias, causas e uma nova espécie de corpo doente – o homossexual, com seu passado, caráter, forma de vida, meio. Com este marco, emergiu todo um conjunto de seres que serão objetos para a clínica e medicina legal nas décadas seguintes (GREEN & POLITO, 2004, p.p. 77-93). Contudo, mesmo antes dos anos 1890 do século XIX foi possível encontrar um conjunto de referências ao erotismo entre pessoas do mesmo sexo, sobretudo entre homens. ()

Publicado em: Anais eletrônicos do VII Encontro Estadual de História: Diálogos da História, 30 de setembro a 03 de outubro de 2014
Download: PDF no Academia.edu

Efeminação em escritos do século XIX: anotações prévias de um problema (1853- 1890)

Resumo
No século XIX, a categoria de ” efeminação ” surgiu aqui e ali como uma característica negativa ostentada de certos indivíduos do gênero masculino, em diversos documentos diferentes. Tanto nos jornais quanto nos romances, bem como em teses de douramento dos jovens médicos, uma descrição nada lisonjeira acompanhou os homens que agiram, falaram, se vestiram ou se comportaram como integrantes do gênero oposto. O objetivo deste artigo é investigar distintos enquadramentos de sujeitos efeminados em diferentes fontes, e as conexões e diferenças entre estas categorizações que povoavam o imaginário do império brasileiro.